ATELIÊ ABERTO
Um labirinto de labirintos

Experiência de conhecer o ateliê do multiartista Marco Paulo Rolla se transforma em acontecimento que transcende tanto espaço como tempo

Insta: Marco Paulo Rolla

Conhecer um ateliê de um artista é com penetrar no labirinto, de labirintos, dentro de um espaço reservado para a criação e também para revelações, mesmo que subjetivas. Ateliê é como espaço sagrado, onde uma partícula de luz ou um grão de sombra podem transformar o que seria uma poeira da imaginação em algo concreto e impalpável ao mesmo tempo.

Chegamos ao ateliê do artista Marco Paulo Rolla, eu e Leopoldo Gurgel, no meio de uma tarde cinzenta, meio chuvosa e, a cada passo – do portão, passando pelas plantas que ele tanto gosta – até a porta do amplo galpão em que ele dá vazão a um universo de manifestações artísticas, era como se estivéssemos participando de uma espécie de iniciação. Só fui entender isso algumas horas mais tarde, quando a transformação em mim já surtia efeito, embora eu não soubesse traduzir em palavras o que sentia.

Como convém ao momento pandêmico, usávamos máscaras cobrindo o nariz e boca e que poderiam nos impedir de saber que havia um sorriso por trás delas, não fosse o som que se repetia a cada trecho de frases enquanto caminhávamos rumo a instalações, esculturas e pinturas, passando pelo torrão de pedra logo na entrada com um machado repousado sobre ele. Mais tarde, Marco Paulo explicou que ainda não era uma obra, embora eu visse aquilo como uma das múltiplas expressões das inquietudes que levam um artista a criar. Mas, mais tarde, ele ele comentou que a pedra estava ali, ainda esperando algo acontecer, na companhia de um machado que havia ganho de presente de um artífice, em Santo Antônio do Leite, se não me engano.

Mas voltemos ao riso solto que pontuou a fala do artista enquanto fazíamos um percurso não definido, em que avançávamos um pouco, recuávamos, mirávamos as paredes, as mesas e seus objetos, a arte por toda parte. O riso que arrancava de mim um sorriso oculto pela máscara, que talvez pudesse ser visto pelos olhos, o que pouco importa agora.

Importa agora, o tema central do trabalho de Marco Paulo: o ser humano e os seus desejos na construção daquilo que somos. Importa que foi na música que ele aprendeu a maioria dos conceitos e percepções formais e sensoriais do fazer criativo. Importa o tanto que sentimos ali, naquele espaço/tempo em que conhecemos um pedacinho da história dele. Sentimos um pouco a nossa vulnerabilidade, as nossas deformações e inquietudes, num confronto sutil, entre a leveza do artista ali, diante de nós, e a densidade de sua obra.

“Não é somente o belo que nos fascina e ativa a nossa sensorialidade. O grotesco e o mau gosto estão aí utilizados como valores de dramaticidade estética. No meu caso, acho que desloco essa sensação para uma dramaticidade do cotidiano social, criando uma tensão, quando confrontados com os “bons modos” da arte contemporânea. Essa mistura entre o cotidiano e o poético/simbólico, ou o diálogo da arte contemporânea com o popular ou o tradicional são uma constante na tentativa de leitura e reflexão da vida”. Peço licença para utilizar essa resposta de Marco Paulo Rolla, dada em uma entrevista publicada no livro Vertigem, organizado pelo artista e Cristiana Tejo, com colaboração de Marcos Hill, com obras de Marco Paulo. Ela diz muito do fazer do artista.

Para ele, os modelos sociais vigentes o incomodam e o fazem refletir sobre a deformação da realidade como resultado desse jogo. “Basta olhar como estão agindo os corpos na atualidade, cortando-se e colocando pedaços, inflando, sugando, esticando, arrancando pelas costelas. Esse cenário não me parece agradável e, mesmo assim, estão me prometendo maravilhas nas imagens da felicidade capital”, ele comenta na mesma entrevista.

Marco Paulo também reflete sobre o tempo acelerado e a angústia da vida corrida. Incomodam. “Faz os humanos mais perversos e competitivos, sem deixar o espaço para o convívio digno e feliz”, ele diz. E palmilhar passo a passo pelas entranhas seu ateliê nos faz sentir essa sensação, de trabalhar a oposição a esse tempo: tanto na percepção do artístico de uma escultura ou pintura, que exigem uma meditação profunda, como na observação, no nosso caso, de sua obra.

Vivemos ainda, naquele dia, um momento único, que é quando o artista recebe do moldureiro a obra, fechada, e a vê pela “primeira vez”. Compartilhamos esse momento único.  A pilha de quadros que estava no canto do galpão foi desembrulhada por ele com zelo, enquanto observávamos num misto de emoção e entusiasmo. Uma a uma, eles foram dispostos na nossa frente. Uma série que se chama Tomografia do Pecado e que representa, em cada trabalho, a gula, a ira, a inveja, a preguiça, a luxúria, a soberba e a avareza, todas velhas conhecidas de cada um de nós. Iniciado em 2012, foi concluído agora, o que mostra que a dimensão do tempo é realmente muito relativa.

Saímos de lá com um tipo de encantamento por tudo o que vivemos naquele trecho da tarde. Não faltou nem o acordeón, que nos observava desde início dessa conversa, repousando em uma das bordas do ateliê. Marco Paulo, que começou a tocar piano aos cinco anos de idade, aprendeu a tocar acordeón por conta própria e, antes que fôssemos embora, nos presenteou tocando um pouco. Um som que preenche todos os espaços. Fomos embora com a vontade imensa de que essa experiência se repita novamente, de preferência quando não precisarmos mais usar máscaras ou manter o distanciamento que não nos permite um prolongado abraço de agradecimento.

Marco Paulo Rolla vive e trabalha em Belo Horizonte. Graduado pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, é mestre pela mesma instituição. Concluiu residência na Rijksakademie van Beeldende Kunsten (Amsterdã, Holanda), em 1999. Tem realizado exposições individuais no Brasil e no exterior e participado de coletivas em diversas instituições como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, Brasil; Rohbach Zement, Dotternhausen, Alemanha; Muu Gallery, Helsinque, Finlândia; e na Foundazione Pistoletto, Itália. Também atua como performer, cenógrafo e figurinista em espetáculos de dança e teatro.

WWW.MARCOPAULOROLLA.COM
WWW.CEIAART.COM.BR

DESTAQUES

Ouça nossas playlist em

LEIA MAIS

Atração e repulsa

Ruídos, exposição da artista Berna Reale, em cartaz no CCBB BH, apresenta um recorte da extensa produção da artista paraense

Muito além dos muros do museu

Série audiovisual Caminhadas, lançada recentemente pela Oficina Francisco Brennand é um convite para uma jornada pela de redescobertas e inspiração

Cheio de graça

Reforma de um apartamento no centro de Belo Horizonte apresenta soluções que conferem uma digital única a todos os ambientes

De bem com a vida

Projeto paisagístico de Flavia D’urso em propriedade no sul da Bahia respeita a natureza e cria um paraíso muito particular.

plugins premium WordPress