Parceria entre a Coven, de Liliane Rebehy e trabalho da artista Rafaela Ianni está na nova marca, batizada de COA
Insta: Rafaela Ianni – Coven e Coa
Agora que tudo parece já ter sido feito. Agora que ainda estamos sem encontrar respostas para o clima, para o aquecimento, para o desmatamento e descontentamentos, sempre tem uma luz. Luzinha ou holofote, mas alguma claridade que costuma vir da arte, do esforço de quem procura reinvenções cabíveis, vivíveis e visíveis que nos pegam pela mão como se estivessem dizendo: olha, vem por aqui.
É nesse tipo de proposta que dois projetos, um de uma marca de roupa, o outro, de uma designer e artista se encontraram. Numa ponta está a Coven, que tem se destacado ao longo dos anos em um mercado competitivo e turbulento com uma roupa que o Brasil e alguns países reconhecem pela excelência e o mundo fashion aplaude pela competência, apuro e criatividade que nunca se esgota. Em quase 30 anos de mercado, a Coven e Liliane Rebehy, diretora criativa da marca, consolidaram um repertório que abrange feiras nacionais e internacionais e desfiles memoráveis no SPFW com um produto autoral de alta qualidade.
Há um elo marcante entre a marca e as artes visuais em várias coleções da label e é essa sensibilidade que a coloca em destaque mais uma vez, com a parceria entre a nova linha da Coven, batizada de COA e o trabalho de Rafaela Ianni, formada em moda e com pós em arte contemporânea. Esse encontro ganha nuances ainda mais especiais ao conhecer a obra de Rafaela, que utiliza a colagem, montagem e fragmentação como ponto de partida para refletir sobre a dessemelhança, um caminho inverso ao usualmente palmilhado pelo mundo da moda, sempre ávido em criar estereótipos de beleza. “Não é só a revista que está sendo descartada, mas a própria imagem que a mídia massifica”, comenta Rafa que instiga várias reflexões na série, intitulada Objeto Encontrado.
De alguma forma o tema ‘descarte’ também se repete na primeira coleção da COA. Há um tempo que Liliane Rebehy procura dar novos usos para o estoque de tecidos da Coven ( LINKAR A MATERIA IDENTIDADE E COERÊNCIA), algo que outras empresas também têm procurado fazer: em vez de abrir mão do material que já existe, a ordem é procurar novas formas de reciclar.
Foi assim que surgiu a COA, com roupas feitas a partir da matéria prima do acervo da marca. O nome, inclusive, vem da ideia de depurar, tirar excessos para alcançar a essência. Com tecidos escolhidos a dedo, a coleção permanece com os mesmos cuidados dedicados à modelagem e acabamento da Coven.
Não bastasse esse ponto de encontro entre a direção criativa de Liliane Rebehy e Rafaela Ianni, há ainda outro, que sela os dois caminhos. A diretora criativa convidou a artista para desenvolver, com suas colagens, três estampas exclusivas para a nova coleção. O processo fluiu tão bem, que se desdobrou na exposição que abre hoje, 17 de novembro, na loja da Coven de Belo Horizonte em soft open.
Em um mundo em que o banal invade nossas vidas por todos os lados, bom saber que ainda existem namoros e até casamentos que florescem em novas propostas, reinvenções cabíveis, vivíveis e visíveis, que nos pegam pela mão como se estivessem dizendo: olha, vem por aqui.
SOBRE O TRABALHO DE RAFAELA IANNI
Por Prof. Dra. Angélica Adverse – Escola de Belas Artes / UFMG
A imagem é pura criação do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.
[Pierre Reverdy]
Carl Eistein afirmou, no início do século XX, que a arte moderna começa no momento em que ela abandona a noção de semelhança. Para o espectador, a tarefa de não encontrar nas imagens a semelhança encontrada em sua realidade causava espanto ou choque. Entretanto, durante décadas e com raras exceções, as imagens da moda tinham um propósito funcional: provocar a semelhança. Elas eram criadas para gerarem réplicas, ou seja, elas deveriam fomentar o nosso desejo pela mimese. Como resultado, a linguagem da moda contribuiu para associar o fenômeno da moda aos modismos e às repetições. Os corpos, os gestos, as expressões corporais eram repetidas em série. Diante de tantos simulacros na era da reprodutibilidade técnica, nosso imaginário conformou-se aos clichês e aos usos comuns das formas e dos artefatos. Os corpos e os objetos aquietaram-se ao jogo das semelhanças.
A designer-artista Rafaela Ianni retoma os dispositivos modernos da colagem, montagem e fragmentação como ponto de partida para refletir sobre a dessemelhança. Dessa maneira, transforma os vestígios imagéticos dos editoriais de moda apresentando o informe. Rafaela Ianni nos faz experenciar o objetivo surrealista, pois rompe com o real e dispersa o sentido da reprodução semelhante. À maneira de Georges Bataille, ela fomenta o imaginário do dilaceramento. Ao problematizar a uniformidade dos corpos nas imagens de moda lança ao acaso os limites da figuração. Assim, o trabalho retoma a noção da “mesa de dissecação” dos artistas surrealistas para se insurgir contra a idealização antropomórfica da linguagem na moda. Das imagens pós-produzidas ela extrai, recorta e subtrai novos sentidos, e é exatamente por isso que ela denomina seu trabalho como um tipo de “objeto encontrado”. Pois o que está em jogo não é a correspondência entre os corpos. Ao contrário, a montagem de fragmentos de imagens provoca a aparição da potência do estranho e do inquietante.
A criação da colagem a partir de fragmentos está relacionada à restauração dos cacos e das ruínas do mundo moderno, tarefa que o filósofo Walter Benjamin atribuiu aos artistas para construir novos sentidos ante à dilaceração dos fatos em nossa história contemporânea. A problemática do restauro vai de encontro à responsabilidade frente à produção de resíduos, proposta à qual a artista-design responde por sua preocupação com o meio ambiente, transformando o lixo da sociedade de consumo em arte.
Enquanto obra, a narrativa é atenta à desconstrução dos mitos da cultura feminina relacionados ao eterno feminino e à cultura da virilidade masculina. Da necessidade de questionar a atual política identitária, Rafaela Ianni opta por dissolver identidades. A série “Objeto Encontrado” (2021) representa o que Mario Perniola compreendeu como “instalação transbordante” porque a organização dos corpos se funde aos objetos anômalos para revelar a passagem do tempo, o desgaste e a inorganicidade sexual. A existência da obra de arte manifesta-se pela inexistência do original, cada colagem transfigura-se em instalação. Instalação que transborda para fora de si mesma como uma espécie de happening que doa ao espectador a experiência do voyeurismo de uma sociedade do espetáculo. A obra de Rafaela Ianni desafia o imperativo moderno cache-toi, objet, liberando os objetos para o encontro com o nosso olhar com o objetivo de manifestar a liberdade do imaginário a partir das imagens da moda.
Prof. Dra Angélica Adverse – Escola de Belas Artes / UFMG