Sem pressa

Coletar, organizar, memorizar e compor objetos tornaram-se algo capaz de fazer o tempo cotidiano desacelerar de sua dinâmica superlativa

Insta: @claudiadodd70@pepalito65

Bruscamente inapta à contemplação prolongada da natureza ou da arte, comecei a buscar novas dinâmicas de produção de liberdade, expansão e criação. Como artista de formação, e mesmo com todo o gosto nutrido pelo trabalho com as variadas instâncias do pensamento, sempre evitei me alienar com relação aos fenômenos e à natureza. Como dispositivo de defesa e estratégia para manter a saúde, logo percebi que precisaria inventar uma forma de me manter em equilíbrio junto às tarefas do cotidiano na galeria de arte onde trabalho. Transpirar, coletar, limpar, desempoeirar, organizar, memorizar e compor objetos, compor beleza no espaço se tornaram assim como um exercício infinito de expressão e criação dentro da minha própria realidade e fisicalidade, bem como de sua arquitetura circundante.

Grande parte do que conhecemos do mundo é apreendido pelos principais sentidos do corpo. Nos livros lidos, amores vividos, imagens vistas. Mas não posso negar um acréscimo: aprendemos muito estando imersos nessa atual era do visual – ou seja, navegando no privilégio de tudo que é televisivo { (têle) “à distância, longe de” e (visum) “no que é relativo à visão” }. A visão saturada e fixada nos dispositivos digitais de imagem age em minha mão como cumprimento da profecia do célebre midiólogo do séc. XX Marshall McLuhan, ou seja, o meu braço estendeu e tornou-se junção direta com meu olho e cérebro (e por fim com todo o meu corpo) é agora como um dos “meios de comunicação como extensão do homem”.

E eis que depois de muito treinar o olhar e trabalhar fisicamente a ordem das coisas – a fenomenologia e presença dos objetos colecionados – por pura bravura – entram em luta entre si. Como resultado, tantos objetos manipulados e em estado de obra conseguiram se sobrepor ao esforço digital com tanta força que de fato essa operação (instalação, montagem, cenário) tornou-se para mim como uma espécie de meditação espacial, compactação de tempos, como um instrumento de salvação contra a mediocridade [ risos ].

Proliferação de imagens, publicidade, produção de fotografias e vídeos aos bilhões são veiculados incessantemente nas redes confundindo os que não querem se aprofundar no entendimento das manifestações das expressões artísticas que englobam a modernidade – em especial as que romperam com a tradição a partir dos anos de 1960. Essa noção desenraizada, difusa e miscigenada deve ser entendida como uma instância particular do pensamento num novo modelo de organização e visão, que enovela correntes profundas tramadas no coração da atualidade…e mesmo que queiramos apenas brincar com elas, pinçá-las e nos apropriarmos delas – é necessário ter respeito por sua História.

Assim, partes inteiras do meu dia são dedicadas à criação e conexão de elementos, e objetos de tempos díspares (como quando aninho numa única imagem e sob um grande lustre dos anos 40, uma tapeçaria multicor dos 70 e aquela cômoda romântica dos anos 50 que não se encaixaria de modo algum ali). A estranheza criada é triunfo. Ao fazer pulsar o ânimo diante das dificuldades enfrentadas em cada composição, e enquanto um ou outro elemento chama atenção para si mesmo – reinvento aquele instante, chamo outras pessoas a se juntarem a nós humanos, e coisas.

Assim se dá a criação desse tipo de ambiência. Criando ruídos. Não há problema quando interpretamos como se fosse um diálogo claríssimo, como se fosse algo bem simples. Apenas uma cadeira, um vaso em pose fazendo imagem dentro das mentalidades e, diante dela, transformam-se súbito – em elementos capazes de fazer o tempo cotidiano desacelerar de sua dinâmica superlativa, desintoxica por alguns instantes o meu e o teu interior como um processo em obra. E todo o trabalho (em si) torna-se fagulha poética, filosófica e por que não, sublime. A contemplação da Arte – que em algum momento do tempo e do espaço foi meu abrigo e defesa – de fato foi sendo aos poucos transformada num fluxo intenso de invenção, pós-produção e sampler eivado de intensidades – dirigiu e me ofereceu alguns sentidos a mais de resistência, gesto e cura nesse tempo atual. E de fato posso oferecer também à vocês os resultados desse trabalho de sonho, desvelado diante da imagem resultante.

*Claudia Dodd

(Mestre em Fundamentos e Crítica de Arte (EBA UFMG) _ Diretora artística da galeria Pé Palito Vintage (BH). Responsável em Vendas & Liaison, Relações Institucionais, Projetos & Curadoria de Exposições – possui experiência em processos curatoriais, mercado de arte e design modernista brasileiro, marketing intuitivo, escrita e fotografia. Busca colocar em relevo o eclético acervo de móveis e objetos de memória/cotidiano originais de época do acervo (Séc. XX) – bem como contribuir na valorização e preservação do patrimônio material arquitetônico e artístico da galeria que ocupa e participa do complexo do Condomínio do Edifício JK Niemeyer (1952), em Belo Horizonte )

Fotos: Foto de Henrique Falci, com produção e direção de arte de Pedro Moura e Lucas Teixeira

*Foto: Estúdio Bingo, com produção de Claudia Dodd

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