ATELIÊ ABERTO
Vontade da forma

Para Ascânio MMM, a vivência no ateliê é preponderante. Imerso em seu processo criativo, ele sempre surpreende com sua obra.

Insta: ASCANIO MMMAM GALERIA DE ARTE

Que ar o artista respira? Para um dos mais respeitados escultores contemporâneos, Ascânio MMM, nascido em Portugal e naturalizado brasileiro em 1959, é o ar da arte. No caso dele, especificamente, é aquele que pode sorver sem parcimônia em seu ateliê. Por isso, após 40 dias de reclusão em casa, no início da pandemia, chegou o momento de dar seu grito de liberdade. Não de sobrevivência, mas de reencontrar a vida em sua essência. Para o homem que se acostumou a trabalhar todos os dias, de segunda a sábado, por mais de 50 anos, era vital continuar a produzir. E lá foi ele, refazer o caminho a que estava acostumado percorrer diariamente, até o ateliê no Estácio, região central do Rio de Janeiro.

O espaço amplo de dois galpões de seis metros de pé direito funcionou como uma tábua de salvação, lembra a filha, Laura Monteiro, diretora do ateliê. “Se o trabalho para ele sempre foi um elixir, com a decisão tomada naquele momento, passou a representar algo ainda maior. Foi muito motivador. Ali, ele se retroalimenta”, comenta. A fórmula desse ‘bálsamo’ foi tão poderosa que entre, setembro e outubro de 2020, Ascânio surpreendeu a todos “Já tenho uma exposição pronta”, regojizou-se. “Foi um período de muito trabalho, de exercitar possibilidades e parece que aquilo o rejuvenesceu”, acrescenta Laura.

Profundamente imerso em seu processo criativo ele contou com o alumínio, metal que desbrava desde a década de 1980, quando fez as duas primeiras esculturas destinadas a espaços públicos (hoje elas estão em várias cidades brasileiras e do exterior). Escolheu-o porque as obras teriam que suportar às intempéries, algo que a madeira, matéria com a qual lidava, não se adequava. De lá para cá, muita coisa mudou, e hoje, mesmo com uma equipe afinada com o mestre, todas as etapas de suas obras ocorrem no ateliê, desde o desenho e a maquete até a sua execução final. É nesse percurso, entre o que foi projetado e a realização, com todos os aprendizados e acasos incluídos, que se dá a chance de unir as pontas entre a vontade da forma, por um lado, e a abertura às indeterminações variadas da vida, por outro.

A exposição que está em cartaz na AM Galeria de Arte, em Belo Horizonte, é inédita no Brasil e é o resultado de uma mistura de raciocínio e poesia, com base nos princípios construtivos e com rigor da arquitetura, profissão que exerceu por alguns anos depois de formar-se na UERJ, até que a arte começasse a falar mais alto. São obras que foram ganhando novos desdobramentos a partir da experiência do fazer, nasceram das questões práticas da feitura de cada peça. São esculturas em chapas de alumínio que são recortadas milimetricamente que se destinam, antes de tudo, ao olhar. Somente a visão pode perceber a alternância entre solidez e leveza, experimentada ao se deslocar à sua volta.

No início está o traço do artista, feito a lápis no papel, quando as formas começam a ganhar vida. Esse feito à mão prossegue no manejo do alumínio que, apesar de remeter à construção civil, em cada obra evidencia a presença humana, do manual e também do raciocínio de Ascânio, que cria um jogo de vazios e cheios, luzes e sombras que instigam o espectador. Vê-las em uma fotografia em nada se compara a vivenciá-las, e é exatamente isso que elas oferecem quando observadas a certa distância ou com o olhar bem rente a cada uma. A dupla função, estrutural e visual, dos parafusos que fazem parte das obras permitem um ritmo a cada uma delas.

Nos trabalhos batizados de “Quacors” – neologismo criado por ele, unindo as palavras quadrado e cor – essa cadência também é oferecida pelo uso das tonalidades empregadas. São híbridos de esculturas e pinturas em uma sucessão de módulos quadrados, ora vazados, ora preenchidos, articulados por parafusos dotados de certa folga, de tal forma que as composições sejam, a um só tempo, tesas e fluidas. Por isso, mesmo expostas rente a parede, requerem participação ativa de quem as observa.

Primas, trabalhos que também fazem parte da mesma exposição, são mais arquiteturais e neles não há cores agregadas. As formas obtidas decorrem da distribuição de direções diagonal e vertical, na sobreposição de camadas que forma tramas e no apoio da base. Duas das esculturas, Prisma 3 e Prisma 4 apoiam-se na quina dos módulos, como se flutuassem. Prismoa 2, entretanto, está assentada na base do quadrado e é possível entrar nela, por um curto corredor. A experiência do lado de fora é tão rica quanto, e permite mais liberdade em sua exploração.

Há um preciosismo nesses trabalhos, que embora utilizem material industrial, têm, todos, a finalização que só a mão do artista pode saber se chegou ao ponto certo, como uma joalheria em grandes dimensões. Esse contraste da escala industrial com o manual é uma característica que Ascânio leva para seus trabalhos, além da leveza, da transparência e do movimento.  E como ele mesmo comenta, o papel de seu conhecimento em arquitetura é fundamental. “Se fosse só o aprendizado nas artes visuais eu não teria essa visão”, diz. O arquiteto que se tornou artista nunca abandonou os preceitos da arquitetura em sua produção.

Outra característica forte em Ascânio, e rara, é chegar aos 80 anos de idade com vigor para propor o novo. “Estou sempre pensando em fazer algo novo. As próximas obras, vou fazer outras coisas, diversas dessas aqui”, revela. E você já tem em mente o que será, Ascânio? À pergunta, que vem no finalzinho da conversa, ele responde com um sorriso.

FOTO DE CAPA:  ÁLVARO FRÁGUAS

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