Iniciativa da fotógrafa Michelle Mulls, hub criativo ocupa parte do segundo andar do prédio do Jornal do Comércio em BH
Insta: Espaço Vão
Belo Horizonte está a milhas de distância de Lisboa, mais distante ainda de Berlim, não só na geografia, mas na cultura, cada vez mais sucateada por aqui. As duas capitais europeias são exemplos de cidades que assumiram a cultura e a criatividade como eixo central de seu desenvolvimento, o que fica difícil de imaginar que aconteça na capital mineira, ou em qualquer outro canto do Brasil no atual momento.
Mas me lembrei imediatamente de Berlim e Lisboa com a notícia do nascimento de um novo hub criativo, batizado de Vão, iniciativa da fotógrafa e publicitária Michelle Mulls, que ocupa uma área de 485 m2 no segundo andar do prédio que abriga o quase centenário jornal Diário do Comércio, um dos mais antigos jornais de economia e negócios editados no país. O espaço, antes subutilizado, agora encontra uma nova função.
Centros criativos não são novidade, já existem há um século, mas nos últimos anos eles têm recebido mais atenção. Os hub, que não sã apenas centros criativos, formam um ecossistema dinâmico de espaços criativos e comunidades de empreendimentos afins. São locais para profissionais e empreendedores de micro, pequeno e médio portes se reunirem, conectarem e colaborarem, promovendo inovações que somam muito em relação à sociedade.
E é dessa forma que Michelle entende o hub Vão, ainda no começo de sua trajetória. O espaço, hoje, abriga um estúdio fotográfico, duas salas fechadas e ainda um amplo espaço aberto, pronto para ser ocupado de diferentes maneiras e por diversas manifestações. Além de ensaios de fotografia, exposições e mostras e mesmo gravações de videoclipes, que por sinal já tem sido feitas por lá, ele abre a possibilidade de ser abrigado por cursos, palestras e o que tiver afinidade com a comunidade que já começa a se formar: por enquanto, além de Michelle, a Brizola Art Galeria e a empresa ZB Luz e Som já se instalaram o espaço.
Como cada hub é diferente, dependendo do contexto local, o Vão pretende ser mais do que parte de um edifício e mais do que uma red, já que está inserido na dinâmica de uma região pólo de comunicação. Inicialmente, quem sai ganhando com a empreitada é o próprio jornal Diário do Comércio, que está se reinventando no digital, concentrando-se em produzir mais vídeos e podcasts.
Vale, como inspiração, pensar sobre o caminho percorrido pelas duas cidades europeias.
Berlim, cidade que passou por múltiplas mudanças em função de guerras, de sistemas políticos e modos de produção, viveu processos de construção e reconstrução, de crescimento e declínio. De uma cidade dividida no pós-guerra a uma cidade reunificada em 1989 no período pós-guerra fria, Berlim sofreu uma grande reconfiguração econômica, de uma cidade industrial tornou-se uma cidade baseada numa economia de serviços.
O desemprego gerado pelo processo de desindustrialização fez com que o modelo de desenvolvimento da cidade fosse repensado e sua centralidade fosse deslocada para novas bases, tendo na cultura seu eixo estratégico. Economicamente falida em função do declínio do velho modelo industrial, Berlim tinha em seu patrimônio cultural e em sua história um apelo simbólico com grande potencial de atratividade e competitividade. Assim sendo, a cultura passou a ser entendida como motor para o desenvolvimento da cidade e para ampliação de oportunidades para novos negócios e para a atração de profissionais qualificados, além de investidores externos. Grandes investimentos públicos foram realizados na criação ou recuperação do patrimônio histórico cultural da cidade, seja no lado ocidental ou oriental, assim como também foram direcionados para a promoção e realização de grandes eventos.
Em função do elevado deslocamento de alemães que residiam na antiga Berlim oriental para o lado ocidental, vários prédios (residenciais e empresariais), além de galpões industriais ficaram desocupados, o que fez com que artistas e profissionais da cena underground ocupassem esses espaços, transformandos em pontos irradiadores de uma rica produção cultural e de entretenimento alternativos. Essas áreas tornaram-se ambientes artísticos, criativos e boêmios, o que gerou grande atratividade e interesse de prossionais e empreendedores de outras cidades e países.
Infelizmente, com o tempo, processos de gentrificação acometeram essas regiões da cidade, que aos poucos passaram a sofrer com a especulação imobiliária e a consequente “expulsão” dos artistas e profissionais criativos que lá residiam e trabalhavam, criando uma nova atmosfera para o local, fato que se repetiu em outras grandes cidades do ocidente.
Ainda que tenha apresentado esse tipo de impacto negativo, de modo geral, Berlim tornou-se uma das cidades europeias mais visitadas, atraindo profissionais e empreendedores criativos do mundo todo, fortalecendo a sua economia criativa e toda uma economia de serviços relacionados.
Lisboa seguiu os passos de Berlim e elaborou um plano de desenvolvimento urbano baseado na sua riqueza cultural e na criatividade como fator de transformação social e econômica. Neste sentido, assumiu a economia criativa como vetor de desenvolvimento e investiu fortemente na requalificação de espaços urbanos degradados (Ex.: LX Factory, Hub Criativo Beato, Startup Lisboa e Village Underground Lisboa) voltados para o incentivo a startups e polos tecnológicos, promovendo a qualificação e o fortalecimento de empreendedores e negócios criativos e inovadores.
Os 3 Ts da Lisboa Criativa: uma cidade com uma densa rede de ensino superior e com um elevado número de profissionais diplomados (por ano) em cursos relacionados com o campo criativo, uma cidade multicultural e acolhedora dos seus visitantes, uma cidade com redes de telecomunicações e de banda larga de altíssima qualidade, e, por último, uma cidade promotora de políticas de investimento para a reabilitação do seu patrimônio histórico-cultural e para a dinamização de bairros e espaços criativos.
A cidade também se notabilizou pela manutenção de um calendário artístico cultural e de eventos voltados para a criatividade e inovação, dinamizando a cidade e suas indústrias culturais e criativas durante todo o ano. A arte urbana passou a ser símbolo de uma Lisboa contemporânea, funcionando como uma galeria a céu aberto. A música e a gastronomia portuguesa também se tornaram elementos importantes, gerando atratividade para um turismo cultural potente e diversificado.
FOTOS: MICHELE MULLS