Arquitetura hostil

Há quem a defenda e quem a aponte como uma forma de dizer “não se sinta em casa” em público

Insta: Ana Paula Guedes

A imagem amplamente divulgada, no início deste ano, do padre Júlio Lancellotti quebrando, a marretadas, pedras pontiagudas instaladas debaixo de um viaduto na Zona Leste de São Paulo repercutiu: a ação da Prefeitura que, sob o pretexto de coibir o descarte de lixo no local, suprimiu um espaço usado por pessoas em situação de rua, trouxe à tona a discussão sobre a cidade e seus usos e reacendeu o debate sobre a arquitetura hostil.

O termo, cunhado pelo repórter Ben Quinn no jornal britânico The Guardian, apareceu pela primeira vez em 2014. A matéria, intitulada Anti-homeless spikes are part of a wider phenomenon of “hostile architecture” (As pontas de ferro anti-sem-teto são parte de um fenômeno mais amplo conhecido como “arquitetura hostil”), surpreendeu cidadãos de todo o mundo que passaram a notar as práticas listadas por Quinn.

No texto, ele discorre sobre como o desenho urbano influencia o comportamento e o convívio, criticando a exclusão de moradores em situação de rua dos grandes centros. Importante observar que a arquitetura hostil não afeta apenas os humanos, as paisagens que projetamos também podem ser manipuladas para impedir todos os tipos de atos.

É uma pena que também se aplique à natureza: há o registro de uma foto em um rico subúrbio residencial de Bristol, na Inglaterra, onde a solução encontrada para manter os carros dos moradores limpos foi inserir pontas de metal na extensão dos galhos das árvores, evitando, assim, que os pássaros pousem e defequem nos veículos.

A arquitetura hostil é também conhecida como arquitetura defensiva ou design urbano defensivo e estas terminologias são associadas a “pontas de ferro anti-sem-teto”, peças pontiagudas instaladas em superfícies planas para torná-las espaços difíceis ou desconfortáveis de dormir.

Outras medidas incluem parapeitos de janelas inclinados para as pessoas não se sentarem; bancos com braços posicionados para impossibilitar que deitem e aspersores que “não estariam regando nada”. Utilizada também para conter skatistas e urinação nos espaços públicos, a arquitetura hostil, de acordo com seus críticos, reforça divisões sociais e cria problemas para todos, principalmente para crianças, idosos e pessoas com deficiências.

Atualmente, o termo aparece em estudos representando aspectos arquitetônicos que edificam um espaço descontínuo e que limitam a experiência do espaço urbano, do caminhar, do viver e reforçam a ideia da fragmentação. Rowland Atkinson, codiretor do Centro de Pesquisa Urbana da Universidade de York, sugere que trata-se de uma arquitetura que parte de um padrão mais amplo de hostilidade e indiferença em relação à diferença social e à pobreza produzida nas cidades, chegando a afirmar que “seria uma espécie de agressão aos pobres”.

Todas essas são maneiras de dizer “não se sinta em casa” em público. Embora Nova York tenha adicionado mais espaços públicos na última década – incluindo novas praças e parques, áreas para pedestres antes usadas para carros e áreas industriais recuperadas – a arquitetura hostil naquela cidade e em outras localidades tem atraído cada vez mais uma reação dos críticos, que dizem que tais medidas são desnecessárias e visam desproporcionalmente às populações vulneráveis.

A arquitetura hostil pode ser tão sutil quanto simplesmente não fornecer um lugar para sentar, tão óbvia quanto uma parede ou cerca para manter as pessoas ou animais do lado de fora ou tão agressiva quanto pregos de metal embutidos em uma superfície. Esses designs muitas vezes passam despercebidos na movimentada paisagem urbana. “Estamos construindo barreiras e paredes ao redor de prédios de apartamentos e espaços públicos para impedir a entrada da diversidade de pessoas e usos que compõem a vida urbana”, já disse Jon Ritter, historiador da arquitetura e professor da Universidade de Nova York em artigo intitulado “Hostile architecture”: how public spaces keep the public out (“Arquitetura hostil”: como os espaços públicos mantêm o público afastado).

As cidades há muito constroem muros e outras fortificações defensivas para proteção. Ainda hoje, barreiras de metal e concreto são colocadas ao redor de prédios públicos e praças e em outros lugares para deter veículos e prevenir possíveis ataques terroristas. “O que é hostil para alguns é defensivo para outros”, aponta Ritter.

Para bem ilustrar o quão polêmico é esse tema, compartilho aqui trecho de um interessante debate sobre essa questão, que aconteceu em 2017 entre o arquiteto James Furzer, cujos projetos tentam combater a arquitetura hostil, e Dean Harvey, cofundador da Factory Furniture, empresa que produz muitos dos ofensivos bancos “hostis”.

Para Furzer, estamos projetando as pessoas para fora dos espaços: “Existem projetos e teorias que encorajam o autopoliciamento e a autossegurança. Isso em si é uma forma de arquitetura hostil. Eu entendo seus requisitos até certo ponto, mas sinto que mais recentemente tornou-se agressivo.”

Por outro lado, Harvey acredita que está cumprindo uma demanda: “Quando projetamos o banco de Camden, (…) o cliente exigia que as pessoas não pudessem usá-lo para dormir, esconder drogas ou patinar. Quando você nivela todas essas coisas, sai como uma peça bastante defensiva, mas tudo o que fizemos foi habilitá-la para ser usada como uma mobília.”

Em seguida, Harvey aponta que “um banco não é lugar para ninguém passar a noite” e Furzer concorda, mas faz uma ressalva ao dizer que “(…) se estamos excluindo (os sem-teto) de dormir em bancos, precisamos incluí-los em outro lugar. Precisamos começar a projetar nossas paisagens urbanas com algum tipo de área segura e inclusiva”.

Dito isso, é possível projetar um espaço público para desencorajar o comportamento antissocial e encorajar o bom comportamento? Em Londres, arquitetos trabalharam com uma comunidade local em Brixton, no sul da cidade, para desenvolver um espaço público para eles nos pontos de ônibus. Devido à história obscura do local, a comunidade ficou bastante cética. The Edible Bus Stop (O ponto de ônibus para se comer) foi capaz de superar isso com o poder do bom design e da vegetação. Ao criar o espaço com voluntários da comunidade, eles foram capazes de desenvolver um sentimento de orgulho em torno do ambiente, e um senso de pertencimento os fazia cuidar dele, além de torná-lo inclusivo desde o início.

A The Edible Bus Stop inclui uma horta para a comunidade cuidar, cultivar e comer, é claro! Após período inicial de teste, os bancos permaneceram, o local manteve-se limpo e sem vandalismo, ou seja, conseguiu-se criar um comportamento social. No entanto, há quem argumente que acusar um mobiliário ou uma área da cidade de arquitetura hostil é ir longe demais para as motivações de conselhos profissionais, arquitetos e designers. As alças e os assentos inclinados são apenas características de design e não excluem ninguém.

O que você acha? As pessoas estão sendo projetadas para fora de espaços públicos ou o projeto defensivo é crucial para a segurança pública? Numa sugestão mais abrangente, John Ruskin – escritor, crítico de arte, sociólogo (1819-1900) – propôs que busquemos em nossas edificações duas coisas: queremos que elas nos abriguem; e queremos que elas falem conosco.

Artigo publicado recentemente na Revista PUC Minas.

*Arquiteta e urbanista, professora em Neurociência Aplicada à Arquitetura no IEC PUC Minas


FOTOS: Claudão Pilha, Matheus Pereira

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